quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A Ascenção da Lady de Ferro

DESAFIO JIKAN TACHINU • GRUPO CANETA TINTEIRO

Atenção: A história a seguir foi escrita com base na animação Princesa Mononoke, logo aconselho fortemente que tenha assistido o filme para compreender os acontecimentos e personagens.


Mordo com força o pedaço de madeira envolto em um pano enquanto um a aprendiz de Finako, o curandeiro leproso, mexe em meus nervos e tendões do braço. Por mais que suas mãos sejam delicadas e todo o cuidado esteja sendo dado, é impossível colocar as mãos nesta grande ferida sem me gerar dor. Naquele dia em que me tornei a matadora de um deus, também perdi meu braço para a cabeça da loba, e por mais que não tenha morrido por completo, posso dizer que parte de mim se foi.
Winly, a aprendiz, diz para trazerem “a máquina” e logo aparecem dois dos meus artesãos leprosos trazendo um braço feito de metal e madeira junto com uma espécie de motor de combustão a pólvora bem pequeno ligado a ele. Ela pega a extremidade superior do braço com alguns fios metálicos e liga ao meu corpo, novamente, muita dor. Logo, o motor é ligado e ela me diz “tente mexer”. Com muito esforço, eu vou fechando os dedos (que são apenas 3, dois grandes e um polegar, é mais que o suficiente) bem lentamente até cerrar o punho. Tínhamos um sucesso ali.
Por sorte, esta tecnologia já estava sendo desenvolvida muito antes da caça ao deus, praticamente nos primórdios de Tataraba, minha Cidade de Ferro. Havia pedido a Finako que trabalhasse nisso para recuperar os nosso homens desmembrados em batalha, não imaginava que viria a servir para mim. Este novo braço simboliza esta nova fase que vamos passar por agora, na reconstrução da cidade, assim como o meu antigo braço significou muito para mim no início da construção do meu sonho.
Os tempos são diferentes hoje, posso dizer que Ashitaka tem muita importância nisso e, não por acaso, garanti a ele um cargo relevante nesta cidade. Sinceramente, odeio seus encontros noturnos com a garota loba, porém tolero, visto que devo minha vida a ele. Desde que o vi pela primeira vez, percebi que esse jovem tinha futuro e hoje vejo que tudo que ele fez por aqui foi pelo bem comum da minha cidade e da natureza (apesar que ainda considero esta segunda parte como inimiga).
Sendo alguém importante e que conquistou respeito de todos por mérito próprio, acho que ele deva saber como tudo por aqui começou. O convoquei para uma reunião particular em meu jardim ao fim da tarde e estou pronta para revelar a ele minhas origens e motivações por trás de tudo o que construi nesse lugar.


De origem nada nobre
Sem família e ainda pobre
Pude mostrar meu valor
Trabalhando com vigor


Era o começo de uma manhã, o comercio logo abriria na capital, quando uma moça, escondida na lateral de uma loja, foi acordada com um balde de água na cara e gritos:
— Saia da parede da minha loja! Vai espantar meus clientes, garota imunda!
Sem argumentos ou outra opção, a moça saiu dali e entrou no beco mais próximo, onde tentou torcer suas roupas sem muito sucesso. Não ficou tão brava pois já era hora de acordar mesmo, apesar daquele banho vestida ter sido desnecessário. Era hora de se dirigir a ferraria, onde ela auxiliava um velho ferreiro chamado Ótizi a troco de uns trocados, o suficiente para sobreviver. Se não valia a pena trabalhar ali pelo dinheiro, pelo menos ela conseguiu muito conhecimento sobre manuseio de metais ali.
— Eboshi, o que aconteceu com você? Pare de molhar o chão do meu estabelecimento.
— Desculpe-me senhor, jogaram em mim um balde de água agora a pouco e não tenho outras roupas além desta.
— Você não pode trabalhar desta forma. Além de minhas roupas, que devem lhe ficar muito largas, tenho apenas roupas de meu filho, de quando era pequeno, vai ter que usar essas. Vá na sala ao lado e pegue-as dentro do baú.
Ela foi, viu que as roupas iriam lhe ficar bem justas, apesar de lhe servirem, de certa forma.
— Vou fechar a porta apenas para me trocar, ok?
— Sem problema.
Logo após ela fechar a porta, o velho se dirigiu a um quadro da mesma parede, o inclinou, revelando um furo passante e pôs-se a olhar. O corpo da moça ainda não era completamente maduro ainda, porém, ainda era belo o bastante para ele se excitar com isso. Além disso, ele não pode deixar de reparar no cordão que ela carregava em seu pescoço, era bem simples de corda, porém, carregava uma esfera transparente, parecia ser de vidro ou cristal. Terminando de se vestir, ela se virou para voltar e este foi o gatilho para ele rapidamente colocar o quadro no lugar e voltar ao seu posto inicial, voltando a trabalhar.
— Pode por as roupas no varal nos fundos e vir trabalhar.
Ao longo do dia, o velho não tirava os olhos dela, as roupas justas realçaram as curvas que lhe surgiram a não tanto tempo atrás, quando ela iniciou seu trabalho alí, há quase dois anos, ainda tinha um corpo de criança.
— Vou ter que sair, comprar algumas coisas. Apenas continue seu trabalho enquanto eu estiver fora.
Como se ela fosse mesmo escutar o que o velho dizia, sempre que ele saía, ela parava para resolver seu projetos pessoais. Havia forjado, fora da presença dele, um instrumento peculiar que estava em seus retoques finais, neste mesmo dia ela iria terminar. Além disso, no mesmo canto escondido em que guardava este projeto, também estava um punhado de pólvora que um estrangeiro havia levado para vender na cidade, porém parou pela falta de sucesso no negócio e, por acaso, deixou alguns pequenos sacos para trás.
Ela planejava que aquilo se tornasse a rota de fuga desta vida miserável, vendendo a ideia a alguém rico. Mesmo tendo perdido seus pais para um deus animal da floresta durante uma viagem e sua avó, que a criou, tendo falecido há 2 anos, ela ainda tinha chance de ter uma vida boa se esforçando para isso. Sua inteligência sempre se destacou entre as outras crianças de sua idade, havia até mesmo aprendido a fazer contas e ler sozinha, não havia motivos para ela deixar as circunstâncias da vida a guiarem sem rumo.
Logo que ela terminou seu projeto, o escondeu novamente e voltou ao trabalho. Não demorou muito para o velho Ótizi voltar com algumas mercadorias, em destaque um belo pedaço de carne, e um grande sorriso no rosto. Eboshi achou estranho, era difícil ver aquele homem sorrindo. Em meio ao trabalho, ele soltou uma frase bem estranha:
—Mocinha, quando você veio me procurar era praticamente uma criança perdida que só tinha trabalho bruto a oferecer, agora você cresceu em várias partes e seu corpo logo lhe trará “muito trabalho” hahaha.
Ela preferiu ignorá-lo e continuar trabalhando como se não tivesse ouvido nada, essa prática era bem comum vindo dela, porém, ao contrário das outras vezes, o que o velho disse ecoou em sua mente, a perturbando de certa forma. Ela temia que, um dia, sua única escolha fosse usar a “saída de emergência que carregava em seu pescoço, um presente do leito de morte de sua avó, dado com o aviso de quebrar aquilo em sua boca apenas em último caso.
No dia seguinte, já voltando a usar suas roupas normais que haviam secado, Eboshi segue para seu trabalho, porém, ao entrar, logo a porta se fecha e um homem entra na frente dela. O velho, acompanhado de mais um homem, diz:
— Garota, esqueça seus dias dormindo nas ruas e passando fome, estes homens vão te levar para um novo trabalho.
Então é isso que o velho quis dizer no dia anterior! Ela já sabia quem era aqueles homens, eles eram os patrões da sua avó, tinham contratos de mulheres que trabalhavam em prostíbulos daquela região. Isso não podia estar acontecendo, ela teria o mesmo destino de sua avó? Logo os homens a levaram dali para uma casa não muito longe e a trancaram em um quarto. Por mais que Eboshi quisesse ser forte, era inevitável que as lágrimas escorressem de seu rosto. Seus planos de crescer na vida seriam arruinados alí, ela sabia que não tinha uma forma de fugir quando tudo começasse. Logo alguém fala por trás da porta do quarto ao qual ela foi trancada:
— Está com sorte, novata, já temos um cliente interessado em você!
Não, não, não! É o fim, não tinha mais jeito, chegou a hora da “saída de emergência”. Eboshi pega a bola transparente que ficava em seu colar, coloca na boca e quebra com os próprios dentes, dor e agonia vem a sua mente quando aquela casca penetra em sua gengiva e língua, gerando pequenos cortes. Porém, isso não importava, logo ela iria encontrar sua família… Ou talvez não.
O líquido praticamente sumiu, como se tivesse sido absorvido pelo seu corpo instantâneamente ou evaporado. Com isso, ela cospe os pedaços de vidro da bola e, junto com eles, um pequeno papel. Se aproximando da lanterna que iluminava seu quarto, foi possível ver no papel: “Ninguém poderá te ver até o nascer/pôr do sol. Fuja! Viva!”. A princípio ela ficou sem compreender direito aquilo, mas ao olhar para suas mãos, percebeu que não as via, estava invisível!
Não demorou muito para abrirem a porta, dois homens, um dos que haviam comprado a garota para os serviços e o tal cliente, era um caçador da região.
— Fico feliz que aquele velho ferreiro tenha cumprido sua parte, estava de olho nessa mocinha há um bom tempo, irei me satisfazer hoje!
Ao entrarem no quarto, reparam na ausência da garota.
— Não adianta se esconder menina, vamos te achar de qualquer jeito, pare de dificultar as coisas.
Então, eles pararam para procurar entre os móveis do quarto, a porta se fecha e tranca repentinamente. Ambos correm na direção dela e tentam, com sucesso, após algumas tentativas, derrubá-la. Apesar dos passos de alguém correndo, eles não veem ninguém por ali. O corredor era longo, não tinha como ela ter fugido tão rápido, mesmo assim eles seguem os sons dos passos, continuam sem enxergar quem reproduzia aquele som. Logo, param de ouvir os passos, não conseguiram encontrar a moça.
Aproveitando de sua invisibilidade, Eboshi resolve que tentará um plano ousado. Para começar, ela vai até a ferraria, bate a porta da frente e, enquanto o velho atende, entra sorrateiramente pela janela, pega o seu artefato escondido. Foi bem fácil, o velho era lerdo e meio surdo. Saindo de lá, ela segue o seu rumo até o palácio do imperador para invadí-lo. Tudo foi bem fácil contando com sua invisibilidade que aderia até as suas roupas e objetos que mantinha junto ao seu corpo.
Ninguém percebeu sua entrada, por sorte ela conseguiu chegar antes do pôr do sol, mesmo o palácio sendo longe de onde estava antes. Ficou escondida em um dos aposentos próximos da sala do trono até o efeito daquele líquido mágico acabar e aproveitou para preparar sua invenção. Então, em um momento oportuno, ela invadiu a sala do trono, onde o imperador estava a negociar com alguns burocratas e pôs-se a apontar aquele objeto metálico ao imperador. Obviamente, alguns guardas foram em sua direção, ela não perdeu tempo em se pronunciar:
— Não cheguem perto de mim, isso em minhas mãos pode matar o imperador quando eu quiser!
Os burocratas se afastaram do imperador por medo, porém os guardas não pararam de correr em sua direção até que receberam um sinal de mãos feito pelo imperador para tal. Ninguém tinha ideia como uma pessoa com roupas plebéias havia parado dentro do palácio, mas não viam outra opção além de ouví-la, já que o objeto em suas mãos era desconhecido.
— Esta arma que tenho em mãos atira ferro como um arco atira flechas, porém com uma força muito maior e letal. Venho aqui por que o destino me deu uma chance de mostrar meu potencial e quero que vocês me escutem. Posso fazer muito mais de onde isso veio e lhes oferecer em troca de uma vida boa com muitos bens.
— Admiro sua coragem, mocinha! - Elogiou o imperador - Me diga, qual é o seu nome?
— É Eboshi.
— Pois bem, Eboshi, você parece bem inteligente e sabe que, mesmo que me mate, não sairá daqui viva. Então, o que acha de fazer uma demonstração dessa coisa que trás em suas mãos em meu jardim? Após isso, podemos negociar seu futuro.
No jardim, Eboshi tentou disparar com sua criação, apesar da bola de ferro voar alguns metros, não parecia algo letal, além do aquecimento da arma ter lhe causado uma queimadura em seu braço direito. Mais tarde, esta queimadura deixaria uma marca semelhante a cabeça de um lobo.
— Apesar de não cumprir suas palavra na sala do trono, seu projeto parece promissor e sua habilidade no manuseio de ferro é perceptível. Sua aparição com este instrumento tão peculiar veio bem a calhar. Acabei de discutir com estes homens a aquisição de uma pequena vila de ferro próxima a floresta dos deuses animais, o que acha de me representar naquele lugar?
Negar aquela oferta estava longe de ser uma opção, então, logo pela manhã, Eboshi partiu viagem para aquela terra prometida. Ao executar seu plano, obviamente que este não era o resultado esperado, mas sem dúvida era também um ótimo rumo para sua vida. Lá ela cresceu e conquistou a confiança de muitas pessoas, até o dia em que conseguiu chegar ao topo da hierarquia do lugar e passou a ser conhecida como Lady Eboshi. Com ela no comando, a cidade prosperou muito, e o resto vocês já sabem.


Neste mundo injusto
É fácil ser vítima
Dar a volta por cima
Requer um grande custo


Como mudei desde aquela época! Agora, nesta nova fase de reconstrução da minha cidade, sei que posso contar com todos estes amigo que conquistei ao longo do tempo, incluindo o jovem de uma terra distante que acabou de ouvir a minha história. Logo teremos uma nova cidade, meus princípios serão mantidos em diversos pontos, mas estou certa que Ashitaka não deixará que nossa relação com a natureza seja a mesma, principalmente depois que tiver seus “filhos lobinhos”. A mãe provavelmente cuidará deles na floresta e o jovem fará de tudo para protegê-los… Espero que ele não seja um incômodo muito grande para mim, posso ser grata pelo que fez até agora, mas não posso deixá-lo impedir meu progresso. Assim, começa um novo capítulo na história daquela que chamam de Lady de Ferro!

Um comentário:

  1. [Estou participando do DESAFIO JIKAN TACHINU do GRUPO CANETA TINTEIRO]
    Antes de mais nada, eu preciso confessar que depois de ver o filme a Lady Eboshi foi a personagem que mais me decepcionou. É uma personagem muito bem construída pelo Miyazaki e À princípio eu a admirava por sustentar uma sociedade matriarcal que não explorava nenhum dos gêneros, ainda que a força produtiva dependesse quase que integralmente das mulheres. Foi algo interessante de se ver em tela. No entanto, ver a ambição desmedida e o total desrespeito com a natureza me fez odiar ela pouco a pouco, ao ponto de fazer querer matá-la com todas as forças (algo que fiz na minha fanfic de Mononoke Hime).
    Agora, apesar do meu desgosto pela personagem, foi muito interessante explorar um pouco o passado da Eboshi, vendo como ela se tornou a Dama de Ferro daquele vilarejo. O passado foi muito bem trabalhado, pontos pra você pelo ótimo manejo dos planos temporais. Até mesmo o ódio dela pelos lobos pareceu fazer um pouco mais de sentido com a sua fanfic. Mesmo que ela seja uma história criada por um fã, certamente vou adotar esse passado como "oficial".
    Outro aspecto que gostei bastante foram os versinhos no meio da história. Apesar de curtos, eles casaram muito bem com o tom da história e deixaram tudo com um ar mais poético.
    Parabéns pelo ótimo trabalho!

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